Pronunciamento do deputado Waldemar Borges realizado durante a Reunião Solene em celebração aos 20 anos da partida de dom Helder Camara

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE PERNAMBUCO
GABINETE DO DEPUTADO WALDEMAR BORGES
21 DE AGOSTO DE 2019
Senhor presidente, senhores deputados, senhoras deputadas, meus senhores, minhas senhoras, boa noite

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“Há gestos que valem como um programa de vida: erguer um candeeiro, afastar as trevas, difundir a luz, mostrar o caminho.” (D. Helder Camara)
Com as palavras do homenageado, iniciamos a celebração da memória daquele cuja vida foi um gesto de afirmação dos mais elevados valores que iluminam o ser humano na sua trajetória rumo à construção de uma sociedade fraterna, justa e igualitária, que há de ser o destino da civilização humana. Hoje, através do testemunho de vida de Dom Helder Pessoa Camara, celebramos o valor da solidariedade humana, da compaixão, da capacidade de nos indignarmos e de reagir frente às injustiças sociais, de respeitar o próximo na sua integralidade e de praticar o amor nas suas dimensões mais abrangentes.
Todos aqui, contemporâneos ou não da sua obra, somos herdeiros do legado que Dom Helder deixou. Seja por seus atos de fraternidade, por sua coragem cívica, seja pela forma verdadeira como efetivamente vivia a sua fé e exercia o seu sacerdócio, o fato é que aquele cearense de Fortaleza construiu uma trajetória que se tornou referência e divisor de águas entre os que impuseram, arbitrariamente, nas décadas não tão distantes de 60 e 70, os tempos obscuros que o País viveu, e os que, ao contrário dos algozes, alguns deram mesmo as suas próprias vidas, em defesa da retomada da democracia, solapada pela ditadura militar. Dom Helder, ao longo de todo esse período, foi incansável farol, iluminando o caminho que afastava as trevas e acendia luz no peito de todos os que lutavam por liberdade.
Foi por suas mãos que a igreja, sobretudo em nosso estado e no Nordeste, se aproximou dos mais oprimidos. Também foi ele quem levou para dentro da igreja reflexões sobre os problemas das desigualdades sociais, reunindo leigos, religiosos e bispos para aprofundar, discutir e construir soluções para esses problemas que vitimavam e, em boa medida, vitimam a sociedade brasileira. Assim foi nascendo a figura do “santo rebelde” –“arcebispo vermelho”, para os que entendiam que o papel da Igreja era adormecer os oprimidos afim de que, quietos, se mantivessem sob o jugo dos opressores; Ou, “o irmão dos pobres” – como o intitulou o Papa João Paulo II, por ter aproximado, ou melhor, traduzido, as doutrinas teológicas em atitudes cotidianas, sempre na defesa dos valores humanitários que pregava seu Cristo libertador. Ou, ainda, nas suas palavras: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.
O perfil sacerdotal de Dom Helder Camara era de um clérigo que não se limitava apenas às atividades protocolares de sua arquidiocese. Seu corpo franzino e sua baixa estatura circulava tranquila e cotidianamente pelas ruas do Recife. Seus projetos emancipadores conversavam entre si, e todos apontavam no sentido de uma teologia libertadora. Se, por um lado, sua capacidade de articulação e o respeito que sua conduta inspirava contribuíram, por exemplo, com a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; por outro, seu compromisso com o enfrentamento e a superação das dificuldades mais imediatas e objetivas da população o levou a construir o habitacional São Sebastião, no Rio de Janeiro, o Banco da Providência e a Cáritas Brasileira, esta última criada sob sua inspiração, como um organismo de fomento à economia solidária e à segurança alimentar, temas ainda tão atuais nos dias de hoje.
Sua sensibilidade e compromisso social também se refletiam no campo das artes. Dom Helder possuía uma veia cultural muito intensa e através, sobretudo, da música e da poesia, deixou marcado seu humanismo. Na sua Mariama, desejava, através da poesia, um “mundo sem senhor e sem escravos”, ou por sua Sinfonia dos Dois Mundos, advogava a universalização da fraternidade entre as pessoas e os povos. Amigo dos jovens, em sua Carta aos Jovens, dirigia palavras – enfatizando sempre que não eram conselhos – encorajadoras, definindo que “jovem é todo aquele quem tem uma causa a que dedicar a vida”. E foi exatamente na causa mais vinculada à juventude onde certamente recebeu o mais duro golpe pessoal desferido pela ditadura contra ele: o sequestro e assassinato, com requintes de crueldade, do seu amigo e irmão de fé Padre Henrique, discípulo por ele escolhido para ficar à frente dos trabalhos junto aos segmentos juvenis da sua arquidiocese.
Tal atrocidade o fez mais altivo, ativo e incansável, para frustração dos que a cometeram, e, ao invés de intimidar e emudecer o Dom, aquela situação perversa lhe deu mais impulso, para continuar na missão de denunciar as barbaridades do regime. Enquanto os mandatários da época decretavam sua “morte civil”, censurando qualquer veiculação de notícias sobre ele, o arcebispo “irmão dos pobres” saia pelo mundo, com sua calma e coragem, revelando as perseguições, torturas e mortes cometidas contra aqueles que sentiam a justa necessidade de se rebelar contra um governo assentado na força das baionetas. Criou, ainda em 1977, a Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz, que veio a se constituir numa das mais importantes trincheiras de defesa dos presos políticos brasileiros e poderosa caixa de ressonância, a denunciar para o mundo os arbítrios cometidos em nosso país.

Sua atuação, como era de se esperar, provocava as mais diversas reações por parte dos verdugos da ditadura. Frequentemente, pichavam o muro da Igreja das Fronteiras, com mensagens ofensivas e ameaçadoras. Interferiram por quatro vezes seguidas, na indicação do seu nome ao prêmio Nobel da Paz, o que significava, à época, a primeira indicação de um brasileiro àquela premiação. Mas a cada ataque recebido, maior era o seu empenho para lutar em defesa dos mais elevados valores humanos. Foram inúteis todas as tentativas de intimidação que visavam frear a firme atuação do Dom em defesa da democracia e dos democratas.
Meus senhores e minhas senhoras, Dom Helder foi agraciado com mais de 700 títulos e homenagens pelo mundo afora. Cada honraria é demonstração do reconhecimento da sua luta incessante contra as injustiças sociais. Suas palestras, dentro e fora do país, eram sempre as mais concorridas. Os seus discursos eram lidos e repetidos nos corredores das universidades e em todos os ambientes onde houvesse a presença de democratas dispostos a espalhar sementes de liberdade que ele anunciava. Mas ouso dizer, que esse primeiro registro da celebração da passagem dos vinte anos de sua partida que acontece nesta quadra da história do Brasil, talvez seja o momento mais importante, necessário até, para resgatarmos todo o significado do seu testemunho de vida.
Hoje, quando setores poderosos do País flertam ostensivamente com o obscurantismo, quando vemos, estarrecidos, o principal mandatário da República fazer apologia a mais degradante atividade que um ser humano pode promover – a tortura; e tecer referências elogiosas ao mais repugnante dos seres humanos – o torturador; quando vemos a intolerância e o ódio serem praticados e estimulados cotidianamente pelos que deveriam ser os principais construtores da paz social, nos invade um temor enorme de que estejamos à beira de um gravíssimo retrocesso civilizatório, com a derrocada de fundamentais avanços conquistados, muitas vezes com sangue, suor e lágrimas, pela humanidade ao longo de décadas.
É nessa hora exatamente que se faz mais forte a necessidade de reavivar toda a sua luta, todo o testemunho, todo o significado da passagem de Dom Helder Camara aqui entre nós. O Dom da Paz, o Dom da justiça social, o Dom do respeito à liberdade de expressões e de opiniões, o Dom do amor, o Dom da solidariedade e da compaixão,  o Dom da fraternidade tem que estar cada vez mais presente, urgentemente mais presente, em cada um de nós. A sua vida tem, mais do que nunca, que continuar sendo o candeeiro a nos afastar das trevas. E, para que sejamos dignos dos seus exemplos, temos que ser proativos na condução do candeeiro que ele nos legou. Por isso encerro esta breve saudação, parafraseando a ele próprio, quando afirma que “quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes”. Vamos viver com paixão a resistência para que os valores de Dom Helder continuem iluminando o Brasil e o mundo.
E como ele nos ensinou, mesmo nas situações adversas, mesmo nas noites mais escuras, mesmo nas ameaças mais iminentes, “graça das graças é não desistir nunca!”.

Viva Dom Helder Camara!

Muito obrigado.
Boa noite.